Quando Faulmensi Abdano apareceu, houve um pequeno tremor no edifício. Surgiu de frente ao púlpito no qual Visli e eu estávamos, como um corte instantâneo no espaço-tempo do local. As linhas do sigilo apareceram num vermelho-sangue vibrante, flutuando. Não continham letras ou o fundo preto com os quais estávamos acostumados, tratava-se da imagem viva e presente do Ser.
Faulmensi Abdano falou dentro de nós, vibrando de forma agradável em nossos ouvidos. Sua voz era na verdade composta por duas versões masculinas que praticamente cantavam em uníssono, preenchendo cada centímetro da nossa mente, como se não houvesse nenhum outro som no recinto.
"Atentamente trabalhamos, observando cada mínima oportunidade. Os fracos caem primeiro. Em seguida, caem os fortes. Os fortes precisam dos fracos. Os fracos sustentam os fortes, mas não compreendem isso. Como pode um cérebro viver sem seu corpo? Não pode, não se for uma criatura humana-terráquea. O trabalho não tem tempo para acabar e o tempo não está próximo na cronologia da Terra. Seguimos uma meta após a outra. Muitas mentes funcionam como um piris, estão cheias do que nelas colocaram. Mentes não se importam, mas nós nos importamos. As almas não são vazias, mas agem como se assim o fossem. Muitos jogam fora tempo-espaço. Oportunidades são perdidas a troco de sobras. Seguimos. Não lamentamos. Seguimos."
A força daquelas palavras estremeceu os mais sensíveis que ali estavam. Eu instintivamente senti todos os pelos dos meus braços se eriçarem e lágrimas correrem dos meus olhos. Para a minha sorte, a atenção não estava voltada para mim. Uma corrente elétrica percorreu meu corpo desde os meus dedos do pés até a cabeça. Eu não saberia o que dizer após isso. Até mesmo Liz estava impressionada, mas não satisfeita.
"Faulmensi Abdano! Diga-nos em que palavras exatas, no português claro, para que possamos entender, por que está demorando tanto? Por que não derrubam logo os dois de uma só vez?", perguntou Liz.
"O que é óbvio para um não é óbvio para o outro. O que é Verdade para um, não é Verdade para o outro. O inimigo sabe como se focar no alvo mais fácil, preenchendo as lacunas de forma incansável. Os aliados estão divididos por conta do orgulho e nos atrapalham. Neste momento, os próprios aliados estão sendo o problema. Eles estão procurando pessoas com biografias perfeitas para se unirem a elas. Mas pessoas com biografias perfeitas não existem."
"Mas então... o que deve ser feito?", indagou Liz.
"Existe o que pode ser feito e o que deve ser feito. O que deve ser feito é acolher o outro e sua diferença quando ele se aproxima do nosso lado. Clamamos para que nos aceitem também, mesmo em nossa estranheza. Estamos trabalhando nesta união. Precisamos mostrar aos terráqueos que investigar biografias é uma perda de tempo, um erro tático. Humanos focam muito em biografias, histórias, narrativas. Precisamos usar esta peculiar atração de forma inteligente. Ensinar aos humanos a estrategicamente perdoar a biografia dos outros, entender que sempre haverá falhas em seus chamados heróis. O que pode ser feito é usar novas narrativas para atrair ou derrubar os alvos mais fáceis. A tática deles está correta: primeiro os mais fáceis, os peões estratégicos, para então capturar o verdadeiro rei. Os peões espirituais estão se entregando na linha de frente. A estratégia deles está certa: portanto, eu diria que um terráqueo não deve agir como um peão de nenhum lado! Queremos menos peões ao nosso lado e mais seres inteligentes. Os inteligentes estão deveras orgulhosos e este orgulho está nos prejudicando imensamente!"
Aquela mensagem havia sido também para mim. Quantas vezes desprezei o outro por conta de suas escolhas no passado e de sua biografia? Quantas vezes simplesmente ignorei um aliado por conta daquilo que considerava praticamente um pecado? Aquelas palavras me tomaram completamente? Por conta de Faulmensi Abdano, eu decidi corrigir a minha própria postura a partir de então.